Kanimambo Gaia: o fim de uma viagem a Moçambique
Quando cheguei a Manhiça, em Março de 2002, depois de percorrer a EN 1 desde , a imagem que me apareceu à frente era igual a tantas outras cidades moçambicanas à beira da estrada: meia dúzia de edifícios corroídos que abrigavam pequenos estabelecimentos comerciais, diversas pessoas na berma da estrada, a pé e de bicicleta, alguns passeios quase destruídos, tudo envolto num cenário tão deslumbrante quanto normal naquele país, com a Natureza a sobrepor-se, e muito, às marcas da civilização.
O distrito de Manhiça pertence à Província de Maputo, situa-se a cerca de 85 quilómetros a norte da capital moçambicana, tem 6 postos administrativos e cerca de 130 mil habitantes. A sede do distrito é a cidade de Manhiça, que ocupa uma área de 250 quilómetros quadrados e é habitada por 40 mil pessoas.
Depois de indagar onde poderia encontrar um responsável pelo território, indicaram-me a casa de Agostinho Faquir, administrador do distrito. Desloquei-me à sua residência e bati à porta. Poucos minutos depois da amável recepção de Agostinho Faquir, já estava sentado na sua casa a ouvi-lo explicar que “este município foi, durante as cheias, o mais prejudicado de toda a província de Maputo.”
O rio Incomáti transbordou diversas vezes nesses meses, arrasando as culturas de bananas, milho, amendoim, feijão-nhemba, batata doce e mandioca, algumas das mais exploradas do distrito, destruindo milhares de postos de trabalho e grande parte da subsistência local. No total, “as cheias afectaram, nesta zona, mais de 4 mil pessoas que tiveram que mudar de casa de forma inesperada, deixando para trás os seus bens”, esclareceu o administrador do distrito que reconheceu também o “valioso contributo da comunidade internacional no combate à calamidade.”
Agostinho Faquir, administrador do território apenas há um ano, confidenciou-me que estava confiante no “trabalho que o Governo moçambicano está a desenvolver na zona baixa, este distrito sempre teve exportação regular de bananas e açúcar e esperamos voltar rapidamente a poder retomar esses negócios tão importantes para nós.”
Expliquei-lhe que estava ali por causa da geminação que realizou com Manhiça depois das cheias de 2000. Sorriu, embora desconhecesse as características do protocolo, falou-me ainda dos “problemas sérios de malária” que existem na região, elogiou o “povo acolhedor, bom, simpático e trabalhador do distrito”, aproveitando a ocasião para agradecer “em nome do meu município ao povo gaiense, espero que recebam os meus abraços fortes, os meus agradecimentos sinceros pela ajuda que estão a dar e que continuem a manter a amizade connosco.” A conversa terminou com um caloroso “Kanimambo (obrigado) Gaia.”
Viagem a Moçambique: o Tempo e o Futuro
Para um português, filho de pais portugueses nascidos, criados e casados em , desde a nascença habituado às histórias das maravilhas e dos horrores de África, às mordomias europeias e ocidentais, aos ambientes sufocantes e abafados das grandes cidades, devo reconhecer que a primeira impressão de que estava num local diferente e fascinante surgiu do contacto ocular com a paisagem do território.
O cheiro de terra e ar quente a subir nas narinas e a orgia visual que vislumbrava à minha frente, só tinham um impacto compatível com a sensação ambígua de que, em muitos aspectos, me encontrava em .
Na verdade, essa é uma impressão fácil de sentir, tão evidente é a presença de tantas características comuns aos dois países. Desde as sopas de caldo verde, servidas com chouriço assado e vinho português, passando pela arquitectura tipicamente nacional presente em inúmeros edifícios, estradas, passeios e pontes, assim como os nomes dos habitantes e de lojas locais, os cafés de marca lusitana servidos em estabelecimentos repletos de cachecóis dos clubes de futebol portugueses, sem esquecer as acaloradas e fraternas conversas na língua de Camões, os pontos de contacto eram abrangentes demais para não me impressionar.
O conforto que senti derivava também da graciosidade do povo moçambicano, da sua maneira simples, humilde e humana de estar, dos olhares límpidos e dos sorrisos generosos com que fui recebido.
Na hora da despedida de Agostinho Faquir e de Manhiça, que correspondeu aos momentos em que a sombra provocada pelo Sol equivale ao dobro do tamanho dos nossos corpos, recordei-me das pegadas dos nossos antepassados, os dele e os meus, do sangue derramado naquela terra, do comandante Sepúlveda, das armadilhas dos rios e dos mares, das angústias e alegrias vividas em comum, das naus e das caravelas, da fraternidade e coragem que enobrece e agiganta os humanos, dos laços de irmandade entre os dois povos, das provas de amizade que motivaram a minha visita a Manhiça, além das milhares de pessoas, negras e brancas, que consideravam a sua pátria.
Essa noção de pátria era algo que para elas não dependia de uma geografia e de um Estado, mas sim de determinada visão do Mundo, e por isso mesmo milhares de pessoas ficaram destroçadas pelo abandono forçado das suas terras.
Em conclusão, recordei-me de um vasto conjunto de evocações e memórias mas, sobretudo, de uma frase que o escritor francês Denis de Rougemont escreveu, em 1939, no livro “O Amor e o Ocidente”, uma passagem em que pronuncia uma verdade da Vida: “O Tempo destrói o acto, mas o acto é o juiz do Tempo.”
Com estas belas palavras a vaguearem na minha cabeça, tornou-se simples para mim perceber que os actos de solidariedade e compaixão genuína entre os dois povos nesta era moderna têm ainda mais razões para existirem pois, se houve épocas em que as comunidades portuguesas e moçambicanas andaram tristes e desavindas e outras de mãos dadas, não existem desculpas para agora, em pleno novo milénio num Mundo que se pretende mais democrático, fraterno e justo, os dois países não voltarem a juntar os corações e as almas de muitos homens e mulheres que, na verdade, nunca se separaram, mesmo permanecendo afastados fisicamente por alguns milhares de quilómetros de distância.